"Tu não és para mim senão um garoto
inteiramente igual a cem mil outros. Não passo a teus olhos
de uma raposa igual a cem mil outras. Mas, se criarmos laços, nós
teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu
serei para ti única no mundo"
A. Saint Exupéry
Sempre fui um bunda mole com bicho, desde
criança. Daqueles que salvam mosquitinhos no box pra não se afogarem com o
chuveiro ligado, sabe? Bem desses. E é assim, com corações moles, que boas histórias começam. Aquelas raras, tão boas de contar quanto de viver.
Ainda
me lembro do começo de tarde chuvosa que nos trouxe até aqui, um
intervalo no aguaceiro daquele janeiro. Voltava da
padaria com meu amigo Claudio (e amizade é sempre a tônica do que
importa na vida) pela escura rua de sua casa quando vi aqueles passinhos
tímidos, cabeça baixa e olhar perdido na minha direção.
Era uma raposinha. Uma
daquelas que você bate os olhos e sem conferir os documentos já sabe que
é fêmea. Trocamos olhares e ela veio, com uma certeza que só
criança e bicho podem ter. Agachei-me e troquei com ela o primeiro dos
muitos carinhos no fim da coluna que tanto adorava. Tá com fome?
Quer um pedaço de pão? Pão é mancada, né, mas não tenho um bife aqui.
Tá, ok, agora... vai.
Eu estava na idade onde começamos a endurecer. Não
pela fibra adulta de quem faz o que precisa ser feito, mas pelo desejo
de parecer sólido. Pensei naqueles olhinhos ali, tão imensamente meigos
quanto eram grandes os motivos para não levar mais um cachorro pra casa.
Pensei, pensei, pensei em tudo isso enquanto ela
caminhava ao nosso lado. Entramos. Ficou para fora. Por trinta
segundos. Enfiou-se pelo portão, atravessou a grade e pronto, novamente
grudada em mim. Estava definido. Ponderei por longos e importantes vinte segundos que ela
teria uma nova casa. Provisória, claro, afinal podia ter se perdido e
alguém bem deveria estar bem triste com a ausência de um bichinho tão doce,
tão lindo e tão fundamentalmente meu. Meu.
Telefone. Oi, mãe. Vou levar uma menina pra você conhecer amanhã. Você vai adorar. Desconfiança, beijo, tchau.
Tentamos
dormir. Tentamos. A raposinha pulava, chorava e arranhava a porta do
quintal tentando entrar. Maldita hora, coisa e tal. A gente sempre diz isso
das malditas horas que deixam saudade.
Dia seguinte, vou pra casa e minha mãe me
recebe com a menina no colo. Não, não quero, desse jeito vamos ter de
sair pra caber mais um bicho aqui, não dá pra trazer todo cachorrinho que a
gente vê na rua e ela é tão linda, será que está com fome? Olha, bebeu
todo o leite, nossa que fedida, está com pulga, vou dar um banhinho
nela e preparar a caminha. E foram 16 anos de banhos. 16 anos de leite.
Jamais
responderam os cartazes no bairro. "Raposinha encontrada" não merecia
mesmo resposta porque não era verdade. Correto seria "Raposinha reencontrada,
finalmente está com a família, Fiquem tranquilos".
Batizada como Siouxie, um nome difícil dado por
um teen curtidor de gothmusic para complicar a vida dos parentes.
Siouxie, vulga Xuxinha, Chípis e o que mais meus avós conseguissem
chamar. Ela vinha, sempre vinha. Descobrimos no veterinário que tinha aproximadamente quatro meses. Conviveu com Apolo, meu primeiro viralata, cujo nome era irônico demais para um cão mais feio que bater
na mãe por causa da janta. Chegaram a cruzar numa escada nada romântica,
mas foi efêmero: ele morreu pouco depois e veio Scooby (um nome originalíssimo para
coroar o fracasso de minha iniciativa roqueira versus o talento do meu
pai para apelidar qualquer coisa). Scooby (ex-Bowie e então "Cube") foi deixado ainda filhote por alguém (que provavelmente sabia o naipe dos corações-de-manteiga que ali moram) na garagem de casa e foi rapidamente adotado por Siouxie. E
tanta era sua vocação de Oxum que com ele, tempos depois, teve cinco
filhotes nascidos em casa. Tornava-se mãe enquanto minha mãe tornava-se
avó (e parteira com amplo know-how). Essa mesma Siouxie, mãe de filhotes
lindos que foram logo adotados, tornou-se avó de oito por uma das duas filhas
que ficaram conosco. E assim formou-se a matilha que adotou meus pais.
Um macho, quatro fêmeas e uma raposa, a matriarca, status que ela sabia usufruir.
 |
Matilha reunida |
Siouxie era
libriana, assim
coquete, meiga, manhosa. Um tanto elitista, fresquinha até, desfilava pela casa com o rabão desfraldado. Completa e
irremediavelmente grudada em minha (nossa?) mãe, de quando chegava até a hora
de sair. Acompanhava no quarto, na cozinha, no banheiro. Aos poucos
passou a dormir dentro de casa, depois no quarto em
sua almofadinha VIP. Adepta da etiqueta, aprendeu sozinha a urinar no jornal. Visitava
brevemente os parentes no quintal e retornava pra dentro, pra Sua casa,
onde vivem as pessoas (como ela), numa rotina apenas quebrada pelos 'ões'.
Rojões e trovões, como aqueles que tornavam todo Ano Novo um pesadelo,
como aqueles que provavelmente fizeram com que fugisse de sua casa
original num janeiro chuvoso, como aqueles que fizeram com que fugisse
da nossa casa também, num descuido.
Foram semanas procurando nas ruas, pelas guias.
Não esperava encontrá-la viva, afinal. Uma bobinha que parava atrás do
carro quando estávamos de saída certamente não sobreviveria à avenida agitada
onde morávamos. Procurávamos pelo corpo, em rondas noturnas de um lado
ao outro dos bairros de cá da Avenida dos Estados (para os lados do
centro sequer pensamos em ir; sobreviver a seis pistas de trânsito não
parecia realista) até rarearmos as buscas. Papéis pelo bairro, alarmes
falsos e esperanças minguantes.
Um dia Claudio, aquele Claudio, ligou-me
no trabalho. Estava no tróleibus e viu um cachorro parecido com ela, lá
na Pereira Barreto. Do outro lado da cidade. Quase em São Bernardo. Tá. Tá
bom.
Pulga atrás da orelha. E se? Vamos lá. Cheguei naquela mesma rua onde a encontrei um
dia. Deixa o carro aí, Denis. Onde eu vi é logo ali. Fomos até o local e já na esquina
vejo uma raposa com um lenço no pescoço. Pulguenta e suja mas ainda
cheia de pose ela correu pra mim, rabinho ligado no 220V.
 |
Living la VidaLoka |
Três meses
depois de sumir ela estava de volta. Sã e salva. Três meses de vidaloka
nas ruas. Chegara duas semanas antes no posto de gasolina onde a encontramos depois e prontamente
adotada pelos frentistas. Ali confraternizara com os demais condomínios de
pulgas e compartilhara com eles os restos de marmita dos seus novos
anjos-da-guarda.
Foi uma negociação difícil. Os frentistas aceitaram, disfarçaram o choro e
despediram-se. Entendo bem o que sentiram. Dei-lhes um engradado de
Itaipava e uma foto dela dias depois. Antes disso, porém, eu tinha um
outro coração pra aplacar.
Oi mãe, vou passar aí no seu trabalho...
preciso te mostrar uma coisa.
Minha avó havia morrido pouquíssimos meses
antes e, para minha mãe, a sensação negativa pairava sob qualquer
notícia, por antecipação. A sensação durou até chegar ao portão. Cheia de
lágrimas veio correndo até o carro e mal esperou que eu abrisse a porta.
Pela janela enchia de beijos sua raposinha re-reencontrada. Ironia das
grandes achá-la a poucos metros de onde nos vimos pela primeira
vez. Poucas vezes fiquei tão orgulhoso de nós todos e ou tão grato ao
Claudio.
Amizade é mesmo a tônica do que importa na vida.
Tempos
depois a raposa fugiu novamente, pelo mesmo trovão que a fez arriscar-se
anteriormente o pulo de um muro alto. Reencontrei-a novamente, dessa
vez no próprio bairro. Vivinha. Não sabia mais se era um cão, uma raposa ou o
Highlander.
 |
Em maio, pós-cirurgia aos 16 anos |
Felizmente foi a última vez. Era isso, chega de vida boêmia. Siouxie aposentara-se com
uma vida pacata ao lado dos netos e das filhas, as quais lambia as
orelhas até semanas atrás, como se ainda fossem filhotes.
Recompôs-se bem, a ponto de saltitar pelo corredor naquelas semanas
pós-cirurgia de extração do câncer, onde foi castrada e mastectomisada,
numa incrível recuperação para quem tinha 16 anos, catarata, boca
semi-banguela e um bom saldo de histórias pra contar.
 |
Última foto - 15h00 de hoje. |
Vinte dias
atrás adoeceu. As patas traseiras e o rabão vermelho de ponta branca já
não se moviam. Quinze dias de medicação sem melhora e hoje, no
veterinário, pensávamos em qual das tristes decisões teríamos de tomar
quando, às 15h30, Siouxie deu seu último suspiro nos braços de minha
mãe.
Junto de nossa mãe.
Por si. Por nós.
Só perde quem teve. Só deixa saudade o que vale a pena.
Obrigado pela enorme perda, minha raposa.
Obrigado pelos Amores, pelos filhos, pelas histórias.
Você é a única responsável por tudo o que cativou.
Uma honra ter você na memória. E no coração.
Adeus, irmã querida.
Set/1996 - 13/Set/2012 (15h30)