quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

• Um post de Natal diferente

Nada como uma boa ficção para o final de ano cheio de resoluções para o futuro.
Todos aqui sabem o que penso sobre o Natal, mas este é um post diferente.
Um pouquinho de amor pra adoçar os corações, com a promessa de um UADERREL mais simpático no ano que vem.


Do futuro que não vivi



"Hoje falei com o filho do meu irmão. Ele fez pirraça e xingou o pai com alguma daquelas palavras que tão habilmente escolhemos para ofender a quem amamos e, em nossos pequenos delitos cotidianos, abusamos por conhecer pontos fracos.
O garoto chilicou na cozinha, porque é isso o que garotos fazem, e perdi a paciência a qual nasci sem alguma. Chamei-lhe de canto em três passos: por favor, venha já e agarrado. No terceiro ele veio, lançando-me o mesmo olhar que seu pai usava para cravar-me na memória aquilo tudo que jamais ousei esquecer.
Contei ao menino bicudo e ensimesmado - que é o que os garotos fazem - sobre o quanto seu pai o amava. O quanto havia sofrido para que ele, garotinho bicudo e ensimesmado, fosse bicudo e ensimesmado. Que essa sua magnífica capacidade, sua soberba e sua pretensão iam muito além da vocação dos meninos: era hereditária, genética e, mais do que isso, era um direito.
Direito conquistado por aquele pai, que poupou-lhe da rotina de perdas e danos que afligem a milhões de vozes de todas as idades que, caladas, conformam-se com o destino. Destino reforjado e moldado por ele, o pai, que a custo de privações pessoais, medos e desafios, amenizou dores e amplificou doçuras.
Por amor. Por amor, aquele outro garoto raçudo e metido, cheio de sonhos e talentos, atleta, músico e colega carismático, optou por anular-se nas complexidades, sutilezas cruéis e mil relevâncias da vida adulta e tornou-se pai. Não como um fardo, prisma visto por egoístas e gente de fora como eu, mas como uma meta, um objetivo, um foco e, principalmente, um espasmo da alma, que não se explica por palavras mas transborda em atos do coração.
Não adiantava, no entanto, contar-lhe o quanto eu o amava como se fosse meu – ali eu era apenas um tio num contexto indesejável. Mostrei-lhe então em cada frase, com a clareza que jamais tive, o quanto eu amava e me orgulhava de seu pai. O quanto vi naquele outro garoto (que velho e careca continua meu moleque) tudo aquilo de melhor que jamais fui.
Ficou claro ao guri o quanto eu faria valer minha autoridade, de quem limpou muitas vezes a bunda do seu criador. E do quanto, na verdade, eu sabia que ele, meu sobrinho, amava o pai, mas perdia tempo com orgulhos idiotas e questões tão menores.
Mas escolher as palavras, como o garoto já descobriu, são difíceis nessas horas.
O menino dissolveu seu bico, que deu lugar ao olhar inquisitor que herdou do pai e que tantas vezes flagelou-me com perguntas duras de respostas óbvias que jamais aceitei. Olhava-me com reprovação, pelo meu excesso de zelo com algo tão banal (“eu só briguei com meu pai”), por intrometer-me (“você não é meu pai”), pela minha tomada de partido (“você não é um tio legal”) e por não ver o seu lado (“vocês são todos iguais”).
Foi quando endureci. Quando mostrei-lhe que nosso sangue é o mesmo, não importa qual porcentagem, e que também tenho melindres. Medi forças – porque é isso o que garotos fazem – e apontei-lhe que era por ele, e não por meu irmão, que eu dizia aquilo. Para que não perdesse o bonde do tempo nem deixasse de dizer o quanto ama sua família, que jamais se desse ao luxo de economizar gestos e palavras diante do amor, que jamais contasse com a eternidade do tempo como uma inesgotável poupança a qual se auferem lucros e jamais dividendos, que nunca contasse com o ‘subentendido’ e dependesse das bolas de cristal daqueles que precisam ouvir, de nossas bocas, aquilo que temos a dizer. Que não fizesse como eu, que dizia a ele tudo aquilo que eu não disse ao meu próprio irmão. Porque é isso o que garotos, perdidos e tolos, fazem.

Eu, tolo do mundo, que tanto deixei de dizer, ensinava ao garoto aquilo que não aprendi: que pais morrem, irmãos morrem e tudo vira lembrança, vaga e rala como leite C. Menos as saudades, e o arrependimento por ter construído menos delas do que se gostaria.
Eu, tolo do mundo, reconfortava-me com duas certezas: a de que meu sobrinho não me entendia, mas teria tempo e capacidade para o fazer um dia porque fora criado pelo meu irmão; e que me esqueceria rapidamente após minha morte, exceto talvez por isso. Porque eu, tardio, finalmente e só ali não fiz o que homens fazem.
E Falei:

Eu amo Renan.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

• Eutanásia

Sempre fui a favor. Sempre. Nunca houve uma linha de dúvida, nem mesmo antes de atingir a Idade da Razão e abandonar o catolicismo, como diria o finado Carlin.
Nenhuma dúvida. Maaaas com ressalvas, claro.
O assunto voltou à mente hoje, após sacrificarmos a cadela de estimação da Mony, minha patroa, poucas horas atrás. O emocional está envolvido - nesse mesmo ano passei pelo mesmo com o meu cão - e mesmo assim o racional está presente (necessário para dar o apoio e pensar nas coisas que ela, a "parente", não estava em condições de fazer).

Eutanásia. Os pró-argumentos, pra mim, são muitos. Não só no caso de animais irracionais (seja lá o que isso significa); mas de todo e qualquer ser vivo.
Convenhamos: a cristandade mundial adora um cavaderzinho. Uma feridinha, uma enfermidade pra dar aquele charme. Sabe, morrer na cruz, sangrar, coisa e tal. As igrejas, principalmente as européias, têm o saudabilíssimo hábito de cultuar o dente, dedo, osso e sangue de tudo quanto é santo (e ainda chamar de relíquia). Algo bem materialista, por sinal, mas isso fica pra outro dia.
O fato é que eu repudio. Dispenso a necrofilia. Não tenho prazer na dor, nem na minha nem na alheia. E vida pra mim passa pelo prefixo "qualidade de", do contrário trata-se apenas da descrição de uma função químico-biológica e nada mais. Se há algo de sagrado na Vida - e nisso eu também acredito - não está em manter uma picanha pulsando sobre uma maca (ou numa colher de proteína flutuante num útero - o que nos leva à outra polêmica e cria um gancho pra outro post). O espírito, senhoras e senhores, a alma. É só o que me interessa. Fora disso é bife, máquina de carne, automóvel que, sem piloto, é só veículo inútil. Bom... não sei vocês mas eu não ficaria com um carro parado na garagem nesses termos; ou venderia ou mandaria pro ferro velho, onde alguém necessitado poderia usar suas peças.
Eu gostaria de saber: sem considerar o fato de que o Estado não deve se meter em cada detalhe íntimo da vida do cidadão... por que este mesmo Estado, dito laico, baseia-se numa moralidade religiosa para legislar sobre algo que envolve lógica e escolha pessoal?
Crime? Que eu saiba tortura também é. Não é o Congresso quem vai sofrer por mim se eu tiver um câncer terminal. Eu quero, EU quero uma dose cavalar de um bálsamo qualquer que me deixe dessa vida a impressão derradeira de relaxamento. Dispenso a cara contorcida e desfigurada da dor extrema, injustificada e inútil. Pra ficar bonitinho no velório, talvez. Tanto faz o depois.
Este é um apelo à lógica: se eu não vou melhorar, se vou morrer por mim mesmo dali a alguns dias, pra quê vou ficar agonizando até lá? Qual o proveito nisso, qual o enlevo espiritual para qualquer um dos envolvidos? Suicídio é botar fim numa vida que poderia seguir em frente, melhorar. Enquanto há jeito, há jeito!
Não é o caso do terminal, cuja sentença já foi dada (e é das mais torturantes). Clemência, compaixão e solidariedade nem de perto se parecem com "deixar seu ente querido agonizando por dias (ou meses)".
O fato é que o bando de bundas moles - o grosso da população gnu desse planeta - não quer assumir o fardo de desligar o botão. É por elas - e não pelo enfermo - que não o fazem. É por egoísmo, pela indisposição em sacrificar seus medos em nome da paz do outro. Mesmo após todo aquele discurso de "passei os últimos 6 meses limpando a bunda do pobrezinho", o que resta no final é o complexo de culpa de finalizar o caso, por medo de sonhar que "matou o ser amado porque estava cansada de lavar a bunda". Bulchíti, amiguinhos. Incomensurável e irrestrita bulchíti.

Bulchíti parte tchu
Os supostos pró-vida dizem que terminar com a vida é anti-natural. UADEFóQUI? Isso ocorre a todo momento na verdadeira Natureza - que passa longe dos clichês da modinha vegan, neo-hippie ou qualquer paliativo pra aliviar consciência que o valha. Um animal moribundo no mato vira janta, ora essa. Essa é a clemência da Selva: antes que o câncer te coma em vida, pouco a pouco, algum animal se aproveita da sua vulnerabilidade e te finaliza em segundos. Então por que eu, macaco pelado com aspirações megalomaníacas, me atreveria a negar a solução que a natureza levou 2 bilhões de anos pra aprimorar? Que alternativa eu daria em resposta? Manter o bife latente sob máquinas? Prolongar a dor até o extremo ou dopar miseravelmente (mantendo o corpo e matando a consciência)? Para quê?
Falta foco, gente. Falta foco. É preciso muito esforço de semântica pra enxergar no amontoado de carne inerte sobre a mesa aquele parente, ativo e alegre (ou chato e apático), aquele bichinho simpático e brincalhão... é justamente pelo sorriso do alegre, pela simpatia do brincalhão, que sem pensar duas vezes eu daria o prêmio do descanso (por mais que me doesse, seria menos do que doeu nele).
É tudo questão de dispor-se ao sacrifício (Seu, mais que o de outros).

***

Claro que há poréns, todos mais técnicos do que filosóficos. Qual era a vontade do moribundo? Dá pra saber se ele realmente não vai melhorar, se realmente morreu? O hospital é correto ou estão esperando um fígado zeradinho pra transplantar no filho do filantropo que já deixou 45 mil prontinhos no cofre por ele?
São muitas perguntas que eu espero que você não tenha de responder. Mas... sinceramente? Pra todas elas, após encarar tantas mortes, a minha resposta ainda é a mesma:
Sacrifique(-nos).

sábado, 6 de dezembro de 2008

• Da série "Comadres & Compadres" - nº1


Denis de Marchi pensando malvadeza - by Seri
(caneta sobre guardanapo - 10 X 15 cm)



Seri
(vulgo Sergio Ribeiro Lemos - el dibujero poligluêta), natural de São Vicente, é um ilustrador de mão cheia. Sua cabeça é o que poderíamos apelidar de "Ócio", pois é a própria oficina do capeta. Gente finíssima, faz piada o dia todo. Como chargista é simplesmente um dos melhores que conheço, com um humor atual, cheio da perspicácia que falta à maioria dos supostos ilustradores do país. Seu humor é tão versátil no dia-a-dia quanto nos seus trabalhos (o cara faz simplesmente de tudo e nem assim perde a humildade).
Nos zoamos o dia inteiro. Ele, um cruzamento de Senhor Burns com Zé Bonitinho, é uma das pessoas daquele jornal (e há bastante) que fazem a rotina da convivência valer a pena. Armações, piadas infames, trotes criativos, fotomontagens zoeiras, sacanagens com a estação gráfica um do outro, com os pertences... nesses momentos somos quase um clichê simpático do que deveria ser realmente uma Redação.
Quem quiser conferir os trabalhos desse cara, vale a pena.

► Site do Seri

Como diria o caiçarão: "Tu vai adorar!"
Obs: O "Varsóvia - verão de 49" ele botou só pra dar um charme de gravura de museu...

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

• J. sofre de verdade

É raro quando um drama alheio provoca empatia real sem ter muito a ver conosco, mas às vezes acontece. É público e notório que eu sou um ensimesmado insensível filho da puta que sempre estraga tudo com a melhor das intenções, mas dessa vez me tocou. Assim surge no blog mais uma dessas croniquinhas enormes e sérias que ninguém quer ler (considerem-se avisados, portanto não reclamem :D).

***

Hoje peguei-me pensando em J., que não vejo já tem um tempinho e que um dia decidiu contar-me suas intimidades. Honestamente, eu não faço idéia do porquê confiar justo em mim. Pode ser que seja a tal magia dos desconhecidos, quando fica mais fácil tocar em alguns assuntos com estranhos do que qualquer outra pessoa com algum nível de relação (ou pode ser a minha cara de padre que transmite a ilusão de caráter, sei lá hehehehe).
Seu nome surgiu de soslaio num papo sobre nada, fofocas esparsas da Rádio Peão. Ccomo era muito blablablá à toa, não demorou pra minha cuca mergulhar em si e passear por outros assuntos. Foi quando notícias sobre ela rebobinaram minha tão cansada fita da memória.
E lá fui eu.


<< Rwd
J. tinha um drama pessoal que não posso nomear com nenhum desses rótulos acadêmicos pseudo-psicológicos. Não dá pra dizer que é grande, que é concreto. Talvez dê até pra questionar se é importante. Pode-se também zombar, pode-se achar exagero; há subjetividade suficiente pra todas essas alternativas.
O problema é que J. sofre de verdade. Nos dois sentidos.
J. contou-me um dia, num exercício de conta-gotas, como sofria com a falta de bunda. Isso mesmo, falta de bunda. Assim, de repente, você pode achar que é alguma historinha fútil de uma magrela com baixa autoestima, mas vai além.
J. realmente quase não tinha bunda. Eu só não entendia o peso disso (ou da falta disso) na sua vida. Tá, ok, talvez você não vá virar o pescoço ao vê-la passar, mas e daí? Em termos cruéis, alguém pode até constatar que ali falta algo e logo mudar de assunto. Não creio que seja tema por mais que 30 segundos, certo?

Errado.
J. esteve em cada um dos 30 segundos alheios que passaram por ela ao longo da Vida. Com os olhos tristes e pesados do potencial que nunca se realiza, contou-me como se sentia por ser desbundada no país da mulher-melancia. Do quanto dói ser chamada de jacaré na pré-adolescência. Como é cruel o olhar frígido do galãzinho, aquele que ela queria. Do primeiro "na boa, não rola", cortante aos ouvidos e ao coração. Do quando se sentiria lisonjeada, grata, a mais feliz das rainhas, se recebesse metade dos olhares masculinos que alvejavam as amigas,ofendidíssimas, no ir e vir. De como cada comentário não dirigido a ela assim parecia quando se tratava do tema: "Ah bunda isso, bunda grande, bunda X, rabão, boa parideira, desbundada é u ó..." - tudo era com ela, falava dela e do seu teratoma: o ouvido captava, como um sensor seletivo. E logo ela murchava, em seu silêncio, enterrada nos óculos de aro fino que enxergam demais.
As pessoas nunca têm idéia do quanto suas palavras machucam. Nunca. Mas o pior para ela não eram as palavras cortantes, intencionais ou não: era a hemorragia de concordar, de ser lembrada de que sua mazela a impedia de encontrar prazer (não sei dizer em quais termos, mas pelo que entendia incomodava até mesmo fisicamente, no ato - não fui além da imaginação nem ousei perguntar).

Ter ou não ter, eis a questão da Nova Era. Ela sabia: todos têm pontos fracos e limitações a lidar. Todos se frustram ou falta-lhes algo. Mas para ela poderia faltar-lhe tudo, menos o instrumento de expressão de sua volúpia, de dar e receber prazer, tão importante pra si quando falar ou respirar. "Eu podia ser caolha, manca... era melhor!" - brincou, no único momento em que a vi sorrir além do social.

|| Pause
Já disse que ela é bonita? Toda miudinha. Uma gracinha. Eu pegaria facinho se estivesse solteiro.
Sim, eu notei, ela quase não tem bunda. E ela vê que a gente vê.

► Play
Nossa primeira conversa sobre o tema surgiu quando, no corredor, o macharedo falava sobre bundas (até então eu achava que podia ser pior porque ao menos não falávamos de futebol).
Ela passou por ali, parou, ouviu, bebeu outro copo d'água. Respirou dentro dele e mordeu o canto. Calou, respirou. Ensaiou e perguntou:
"Tá, e o que faz quem não tem bunda de Carla Perez? Se mata?"
Nessas horas ninguém sabe responder. Uns concordam com ela, uns dão uma risadinha, outros se calam. Os mais imbecis aproveitam o ensejo pra passar uma cantada (pouco esforçada, afinal ela não é gostosa mas pode render uma trepadinha). Já os medianamente sensíveis (que sempre se crêem mais do que são) não poupam o interlocutor e soltam aqueles axiomas de alento do tipo "ah mas quando alguém te ama isso não importa" (o equivalente eufemista do "o que importa é o prazer que proporciona").
Nessa hora vi nos olhos dela toda aquela raiva e furor que guardava sob a anca miúda. "Que amor? Eu quero trepar, ser cobiçada, me sentir sensual e atraente!". Sua boca nada disse, selou-se no plástico do copo branco. Mas seus olhos berraram palavra por palavra. E eu ouvi. E ela notou.

>> Fwd
Estava formado o link. Nosso segundo papo chegou no mesmo tema sem muita explicação. "Me dói isso" - começou assim, disparado.
J. sofria de Verdade, essa síndrome de enxergar as coisas como são, suas consequências e, ainda assim, dizê-las.
Meu desafio não foi encontrar alguma "palavra amiga" para vomitar, algum clichê sofisticado qualquer, que venha em drágeas analgésicas de 5 em 5 minutos. Foi não ser arrastado para seu turbilhão de sufocamento, vindo do mais profundo e cruel crítico de sua vida: seu próprio prisma. Também tenho minhas dores e o que ela dizia era o que não queremos ouvir de nossas bocas: que nossos limites, às vezes vencidos e outras vezes vencedores, estarão lá na próxima esquina até o último dia.

J. não sabia o que fazer. Queria dar prazer ao homem, fosse o escolhido, fosse qualquer um. Não queria a esmola daquele que a amasse apesar disso - era assim que via a situação, ser amada por alguém que "relevasse seu defeito".
Era isso: como ela poderia escolher, esbanjar sua lascívia mal contida? Teria de ficar com quem a aceitasse. Sem bunda ela não se sentia mulher, porque os homens gostam de bunda grande e pronto. Não sabia que alternativas teria: exercícios jamais funcionaram - a hereditariedade é poderosa e o melhor que conseguiu foi engordar por um período - menos a bunda. Tentou investir em outros atributos - e tinha bons - mas sentia sempre que essa compensação não adiantaria nada na hora em que seu homem quisesse uma bunda boa, polpuda e redondinha. Seria sempre a "desbundada mas gente fina, isso e aquilo".

As revistas femininas nunca ajudam nessa hora (aliás, algum dia ajudam?). J. disse que já pesquisou um sem número de sites sobre próteses de silicone, hormônios e seja lá que paliativos mais; Pensou em usar calcinha com enchimento. "Mas e aí? Quando eu tirasse...". Pensou em injetar gordura, mas não-sei-quem fez e o corpo reabsorveu; decorou os dados todos e sofreu, linha por linha, com as frases da medicina. Diziam nada poder fazer; que há picaretas no mercado; que o resultado final é artificial - mas ela só lia "esqueça, você vai morrer assim, incapaz".
J. sabia: o mundo é cruel e tudo o que ele quer de uma mulher é sua bunda. Era o que os homens (e mulheres - gladiadoras de vestiário) diziam entre si, entre risos, olhadas marotas, chupadas entre dentes e elogios, que podiam ser grosseiros ou não, mas sempre dirigidos a outras. Como não acreditar no que diziam?
"Eu não odeio os homens por isso, têm o direito de gostar de bunda grande. Eu é que não tenho o que dá prazer pra vocês".
J. diz que concorda com os homens.

|| Pause
J. sofre, de verdade. A dor do banal, a dor do pequeno, a dor de todos nós na sua própria escala.
Perdi contato com ela pouco depois disso. Passou um tempo até seu nome vir à tona.

► Play
Contaram-me ontem que J. tentou suicidar-se.
Esperou a família dormir. No celular constavam duas ou três ligações seguidas para o ex-namorado, que já era ex quando nos conhecemos. Circulou pela casa com as luzes apagadas e trancou-se no banheiro. Tentou cortar os pulsos e fez aquele malfeito, típico dos suicidas de primeira viagem.

▼ STOP
Tenho orgulho de J. pela capacidade de enxergar a crueldade do ser humano e das cobranças do mundo sem apegar-se a subterfúgios. Pela força de prorrogar o suicídio por tanto tempo. Pela incapacidade de conformar-se sem fazer nada. Pela coragem de confessar suas dores.
Apenas sinto, muito, que tenha tentado livrar-se de alguém tão rica.
Mas quem irá julgar? Cada calo só aperta no pé em que lateja e se há famintos na Somália isso não alivia suas próprias dores.

REC
Ela está internada e não corre mais risco de morte. Mas já morreu, trancafiada na exigência do mundo que turva a visão e mofa a alma. Resta romper, transformar, atravessar os traumas e descobrir o que pode fazer com o que tem - o único mérito real sobre algo que se herda. O resto é loteria e não há porque gabar-se.
Espero que ela ressucite e encontre o óbvio: que aquela bundinha miúda, de tão graciosa, só não é admirada porque turvados estamos todos.

J., você, que não me lê aqui mas ali me viu, boa sorte na sua nova Vida.