Sustos possuem aquela natureza ambígua da surpresa que te pega desprevenido mesmo quando é esperada. Não adianta o esforço em contrário: a vida VAI surpreendê-lo, de um modo ou de outro, para bem ou para mal. Não é? Diga que é.
Espero que sim.
"Como você tá?"
"Tô bem, já tô melhor. Quero voltar pra casa."
Meu velho teve um princípio de angina nesse dia 12. Foi pro hospital com uma bigorna no peito, um entalo, um vexame. Pra ele, eu sei que o vexame pesou mais, mesmo sem existir.
Está internado. Aquele senhorzinho frágil, ali na maca, assisindo a um filme mental. Coloquei minha mão no seu braço, meus olhos no rosto vermelho. Olhinhos úmidos sob os óculos que refletiam um Denis gelado e durão (diante dele, homem não chora).
Aquele senhorzinho frágil.
Subiu para a internação com pés de pneu e empurrão plantonista.
Não consegui abraçá-lo. É sempre difícil.
Depois. Na melhor das hipóteses (e eu não sei o que é melhor) voltará pra casa hoje. Na pior (e eu sei o que é pior) ele fica mais ou 'empacota', como sempre diz para amenizar os fatos.
No hospital, cara de cachorro molhado, sugeriu que eu acendesse um cigarrinho lá fora para que ele pudesse dar uma tragadinha. Com isso ele me contou, começo-meio-e-fim, como se dará sua recuperação. Seus últimos dias, escolhidos com a abnegação obscura dos loucos.
Eu sabia que um dia aconteceria. Dois mais dois. E mesmo assim, o susto.
Meu pai, dependente químico, quer morrer mas não quer. Quer viver uma vida que não existe porque não a criou e, por falta dela, recusa a que tem.
Meu pai, alcoólatra, fumante e pururuqueiro, entope suas artérias com gorduras de sonhos e péssimas compensações.
Meu pai, menino carente, é amado e nunca soube, por mais que se lhe dissessem.
É chegada a hora nada amena de escolher o caminho na bifurcação. De, a despeito da inércia dos anos, girar o timão. De, orgulhoso como é, considerar que o pior não é a despedida dramática, não ver os possíveis netos, não tocar mais o violão: o pior é jazer enfermo, dependente, paralizado ao meio até padecer definitivamente de um elefante sobre o peito, sobre o músculo mais dolorido do corpo. Não existe a poesia tranquila que ele sonhou: são dez minutos eternos, dolorosos e terríveis. É chegada a hora de mudar.
Infelizmente, eu sei: minha teimosia é hereditária.
Gostaria que a vida me surpreendesse como algumas vezes já fez. É uma merda ter alguma inteligência, saber ler almas e exames. Não quero esta crônica anunciada tanto quanto não quis as demais. Esta, não sei pontuar: faltam-me as vírgulas, as crases. As concordâncias.
Discordamos a vida inteira. Cobrei dele tudo aquilo que ensinou-me e assim me tornei - o pai da minha primeira infância, o nobre herói a mim tão íntimo. Pinguei minguados perdões às duras palavras ébrias, compreendi as dores do homem para além da profissão de pai - tudo em nome de vê-lo próximo, feliz. Mãe de bandido, insisti numa batalha perdida por ser a única que valia em si.
Lutamos de modos que nem ouso lembrar. Nossos crimes perenes, nossas rusgas e falésias, todas contadas em dias e em anos... hoje dão lugar à preocupação automática, à previsão de um sentimento de vazio combatido com esperanças que nunca fui bom em nutrir.
Tenho medo do que sinto. Do que vislumbro.
Quero que volte pra casa, sóbrio e feliz - duas coisas que conheço distantes dele.
Eu - que devo minha existência à frustração do Balé, aquele jogador de futebol que não brilhou por um triz, ou do Sinachi, aquele sobrenome que não uso e bem ilustraria uma capa de disco - conheço e amo aquele cara como nem ele mesmo. Aquele, a quem busquei em vão substitutos. Mesmo assim, nessa hora confusa onde, contraditório, espero tanto destinos quanto reviravoltas, entendo como não é possível lavar roupas que o encardido dos anos cristalizou. Aquele final romântico, das juras como ponto-final, não corresponde à sentença derradeira. Só o silêncio. Porque não há, afinal, nada de relevante que já não tenha sido dito. Nenhuma ação simbólica que se sobressaia aos atos dos anos, que demonstre mais do que uma vida. Um último mergulho no mar antes da partida não define o todo de suas férias.
Ele já sabe. Conhece meu amor, meu orgulho, minhas mágoas e ódios. Meu abraço é a resposta final, repetida à exaustão há três décadas.
Que a vida me surpreenda. Estou cansado de acertar previsões.
Volta, velho. Ainda não botei meu filho no teu colo.
Charge do dia
Há 4 anos
9 comentários:
Espero que teu pai possa ler a tua alma nos teus olhos também... e que vcs tenham ótimas surpresas.
Luz e força. Abraço com carinho.
Eu precisava muito ler isso. Muito. Obrigada.
Nenhum amor externo, por maior que seja, por mais doses cavalares que sejam ministradas, preenche o vazio daquele amor que só nós mesmos podemos nos dar...
Tomara dê tempo pra que ele o encontre.
Força.
Estou torcendo pelas boas surpresas. Elas aparecem nas situações mais fortes... Sim, é possível!
Descanse e procure se manter em equilíbrio, pq será necessário nesse momento, pra tomar as providências importantes, pra amparar tua família, pra seguir em frente.
E conta sempre com meu colo, meu carinho, apoio, ajuda no que puder. É só chamar.
Beijo.
Eu já passei por isso, você sabe.
E o final não foi dos melhores, na verdade, nós nem tivemos chance.
Apenas veio e levou.
Muitas vezes as pessoas só aprendem na paulada.
Pois que seja então, se for para o bem.
Espero de coração que o melhor caminho seja o escolhido e que a vida seja longa e bela.
Mas a surpresa está em ti.
Amar, amar, amar sempre e com todo
O ser, e com a terra e com o céu,
Com a luz do sol e a escuridão do lodo.
Amar com toda a certeza e todo anseio.
E se acaso for o monte da vida
Duro e vasto e alto e cheio de abismos,
Amar a imensidão, de amor acendida
E arder na fusão dos peitos de nós mesmos...
RUBEN DARIO – versão Edmea Thea Belladonna
Espero sinceramente que você seja surpreendido por seu amor.
E que seu filho/pai melhore em tudo inclusive de saúde.
Conte comigo.
obrigado pela força. :)
O velho já está em casa, já está medicado - e já está fumando.
É...
Se precisar estou de pé pra te dar uma forcinha aí, te empurrando sempre pra frente.
Zé.
/\
|| Fiadaputa. >:((
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